Golpe ou revolução? Às vésperas de completar 50 anos, a tomada do poder pelos militares em 1° de abril de 1964 ainda está cercada de muitas perguntas. Caso o movimento organizado pelos quartéis não tivesse acontecido, o que teria sido do país desde então? João Goulart teria organizado um golpe comunista ou teria sido igualmente deposto, só que por grupos esquerdistas? Como estariam as principais lideranças políticas do país atualmente? O Blog do Curioso entrevistou o professor de História Warde Marx, novo colaborador do programa “Você é Curioso?”.
Mesmo depois de 50 anos, a polêmica ainda existe: a tomada do poder pelos militares em 1964 foi um golpe ou uma revolução? Qual é a diferença entre os dois conceitos?
Foi golpe. Uma revolução, além de derrubar um governo (ou pelo menos pretender isso), altera fundamentalmente a estrutura de um país. Tivemos poucas revoluções: a francesa, a russa, a cubana e a chinesa, para citar algumas. Foi também um golpe por ter sido baseado numa mentira. Explico: João Goulart foi apeado do poder por ter abandonado o território nacional sem prévia autorização do Congresso. Era a regra, estava na Constituição. Os primeiros movimentos de tropas ocorreram na madrugada de 31 de março. Porém, isso acabou sendo pouco significativo. Nesse dia e no seguinte, ocorreram marchas e contramarchas, impasses sucessivos e farta comunicação por rádio e telefone. O presidente voou para o Rio Grande do Sul, de onde poderia fugir por terra se a coisa apertasse, pois era amigo, cunhado e aliado do governador local, Leonel Brizola. Se ficasse, teria que se entregar aos militares ou resistir, mergulhando o país numa guerra civil. Não foi preciso. Em 1º de abril de 1964, o presidente do Senado, Auro de Moura Andrade, anunciou que Jango havia deixado o território brasileiro, dizendo a fatídica frase: “Declaro vaga a Presidência do Brasil”. Imediatamente, empossou o próximo na linha sucessória, o presidente da Câmara, Ranieri Mazzili. Como Jango ainda estava no Brasil, tivemos uma mentira colocada no lugar de um governo eleito pelo povo. E viva o Primeiro de Abril!
Mas, caso uma ditadura comunista fosse implantada, haveria oposição? De quem? Como seriam as ações dessa oposição?
O Brasil possuía uma classe dominante forte o suficiente para mobilizar uma oposição formidável. Seria formada por todo o capital, mais os donos da terra, do comércio e da indústria, agregados ao imenso poder de que desfrutava a Igreja (embora sejamos um Estado laico desde a Constituição republicana de 1891, ainda hoje, sempre que se escreve igreja com “I” maiúsculo, sem adjetivos, referimo-nos à Católica Apostólica Romana) – essa associação teria força para perturbar, senão impedir, o desenvolvimento de um Estado comunista. Essa massa de dinheiro e poder (embora parecidos, não são sinônimos…) poderia colocar o povo na rua. Exemplo disso é que, dias antes do golpe, essa classe dominante convocou a “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”. Resultado: meio milhão de pessoas nas ruas de São Paulo. Isso ratificou a certeza de que os golpistas teriam aprovação popular. Havia outra marcha de mesmo nome marcada para o Rio de Janeiro, na semana seguinte. Quando ocorreu, foi para comemorar o golpe.
Jango poderia disputar as eleições em 1965 ou deveria sair da presidência? Em caso de eleições, quais seriam os possíveis candidatos?
Naquela época não existia reeleição no Brasil. Porém, como João Goulart havia sido eleito vice-presidente (votava-se separadamente no presidente e no vice), a legislação poderia habilitá-lo à disputa. Os outros candidatos provavelmente seriam o ex-presidente Juscelino Kubitschek e o governador da Guanabara, Carlos Lacerda. Esses dois, aliás, ficaram bem contentes com o golpe (Lacerda, inclusive, colaborou muito ativamente para isso), pois tirava Goulart do páreo, facilitando as coisas. Os militares também sabiam das coisas e, assim que possível, cassaram os dois, impedindo-os de perturbar o livre exercício da ditadura com exigências de eleições.
E quanto a ex-presidentes, como FHC e Lula, que tiveram suas trajetórias políticas iniciadas durante a ditadura? Se o período de repressão não tivesse acontecido, eles teriam chegado à presidência ou teriam alcançado carreira política tão longa?
Aqui entramos definitivamente no terreno das especulações. FHC talvez não ingressasse na política como candidato, reservando para si o principado do pensamento sociológico do Brasil, pontificando sobre a situação nacional, como mentor, sim de alguma agremiação partidária, desenvolvendo sua imagem de ideólogo e primus inter pares (do latim: primeiro entre iguais). Ou seja, as benesses do poder, sem os perrengues do poder. No caso de Lula, ele poderia ascender dentro do movimento operário e, daí, para a política. Inteligência, liderança e carisma para isso não lhe faltam. Não acredito, porém, que fosse além de, digamos, deputado federal. A falta do ambiente de combate fortíssimo no qual ele apareceu e onde sempre se saiu muito bem, não daria a ele a chance de mostrar alguma grande diferença das demais lideranças da época.
Como seriam os principais partidos do país atualmente? Haveria uma polarização entre esquerda e direita? Ainda teríamos partidos pré-ditadura, como a UDN?
Hum… essa não é fácil. Mas, vamos botar a imaginação para funcionar. Em primeiro lugar, nosso desenvolvimento (político, econômico, social, educacional etc.) não teria sido tão traumático. Então, crescendo paulatinamente, num ritmo natural, veríamos os movimentos populares, de esquerda ou direita, agindo de maneira integrada no contexto social. Evidentemente, excessos sempre têm ocasião de existir. A radicalização, porém, não. Por isso, acredito que a maioria dos partidos ficaria espalhada pelo centro, com menos siglas de aluguel e um maior vínculo partidário baseado na fidelidade (antes da ditadura, ao que eu saiba, não se trocava de partido com a desfaçatez de hoje!). Assim como temos ainda um PTB, criado por Getúlio Vargas lá nos anos 1940, poderíamos ter, sim, siglas como UDN, sempre batendo na tecla da moralidade no trato da coisa pública, ou o PSD (partido ao qual Juscelino Kubitschek pertencia, sem relação com a agremiação partidária fundada por Gilberto Kassab em 2011), fazendo uma ponte entre os poderes do agronegócio e da burguesia urbana. Comunistas e socialistas seriam bem-vindos, desde que não se apresentassem como revolucionários. O mesmo não seria tão fácil para os integralistas, versão tupiniquim do fascismo europeu. Mas, em nome da pluralidade, eu veria lugar para um partido de direita mais radical, como a dos republicanos americanos ou dos conservadores ingleses. Sempre achei melhor ter esses caras extremistas às claras, sem esconderijos, para ficar mais fácil o controle dos mesmos pela opinião pública. Que é a única que deve dar palpite nisso, aliás.
Saindo um pouco do campo político. Chico Buarque, Gilberto Gil, Caetano Veloso e tantos outros artistas que ganharam fama por causa do engajamento contra a ditadura teriam hoje o mesmo prestígio?
Prestígio sim, por serem grandes artistas, mas de origem diferente. Não nos lembraríamos de seu engajamento, mas de suas qualidades excepcionais, estas sim, verdadeiramente revolucionárias. É um engano pensar que esses artistas, e logo incluo nessa categoria gente como Maria Della Costa, Cacilda Becker, Augusto Boal, Gianfrancesco Guarnieri, Hélio Oiticica, Glauber Rocha, a turma de O Pasquim, Elis Regina e muitos e importantíssimos etcéteras, só foram o que foram porque existiu a ditadura. As artes brasileiras vinham num excelente e inédito momento de desenvolvimento, desde o finalzinho dos anos 1940, crescendo muito nos 1950 e prontas pra explodir nos 1960 – quando tiveram que brecar seu processo natural para enfrentar a mais obscura frente que já houve neste país. Em compensação, artistas cujo único mérito foi “ser contra a ditadura” mereceriam o que seu talento lhes proporcionara, ou seja, nada.
Fonte: Blog do Curioso