Batismo Neopentecostalismo

O dom de variedade de línguas

O dom de variedade de línguas
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Por Leonardo Dâmaso

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Texto base: 1 Coríntios 14.2,4a, 13-17, 21-25, 27-35.

Introdução

No capítulo 14, Paulo estabelece algumas diretrizes para corrigir a forma desorganizada de culto que a igreja de Corinto estava realizando. Para isso, o apóstolo se concentra em dois dons espirituais – o dom de profecia e o dom de línguas. Segundo Paulo, estes dons estavam sendo usados no culto público de maneira equivocada, e, portanto, não estava promovendo a edificação dos participantes.

Todavia, os Coríntios pareciam não se importar com relação à ausência de entendimento que havia nos cultos públicos. Eles sequer procuravam compreender tudo o que acontecia. Este desprezo pelo uso da mente para a compreensão intelectual das coisas estava sendo substituído por um culto eivado pela histeria e focado nas experiências emocionais, as quais eram confundidas com verdadeiras experiências espirituais.

Por outro lado, muitas destas experiências espirituais que os crentes de Corinto experimentaram possuíam influência demoníaca (12.2-3). Tudo isto residia na prática usual de muitos “falarem em línguas” ao mesmo tempo sem interpretação, e isto num estado de “êxtase frenético”, o qual privava os participantes de edificação espiritual (14.14-17,27-28).

O mesmo ocorria com o dom de profecia; todos que possuem este dom “profetizavam” ao mesmo tempo, o que gerava confusão em vez de compreensão da mensagem transmitida (14.29-31).

A ênfase de Paulo neste capítulo é ressaltar como critério a edificação coletiva, e não um tipo de edificação individual, conforme ressalta os continuacionistas na questão das línguas.

O apóstolo ensinou em Efésios 4.12-13, que os dons foram distribuídos pelo Espírito Santo para o aperfeiçoamento e a edificação dos crentes como igreja. Na lista de alguns dos dons espirituais descrita no capítulo 12 de 1 Coríntios, as línguas se encontram em último lugar (12.28). Agora, no capítulo 14, as línguas se encontram em segundo lugar de importância, estando em primeiro lugar a profecia.

Logo, os dons de profecia e línguas deveriam ser exercidos para que promovessem a edificação de todos que estavam presentes no culto público. Podemos dividir o esboço analítico da seção sobre o dom de variedade de línguas em quatro partes.

1) O dom de variedade de línguas com relação aos crentes (14.2,4a,21-25). 2) O dom de línguas com relação aos não crentes (14.21-25). 3. A limitação do dom de variedade de línguas (14.26-28). 4) Equívocos relacionados ao dom de variedade de línguas pelos Coríntios e pelos pentecostais e neopentecostais no presente.

Explanação

1. O dom de variedade de línguas com relação aos crentes (14.2,4a,6-11)

Paulo inicia sua argumentação no capítulo 14 doravante à conclusão de sua argumentação sobre a importância do amor no capítulo 13. No versículo 1 do capítulo 14, ele tece dois imperativos diretos e um indireto.

Em primeiro lugar, o apóstolo ordena que os crentes sigam ou busquem com intensidade e determinação o amor. Em segundo lugar, retomando o seu argumento descrito no capítulo 12.31, ele instrui os crentes para que sejam diligentes na procura dos dons espirituais e, de modo indireto, que eles prefiram especialmente o dom de profecia em relação aos outros dons.

Entretanto, obter o dom de profecia depende, primeiramente, da soberania de Deus; Ele, mediante o seu Espírito, concede os dons a quem quer e como quer. Por conseguinte, obter um dom depende também daquele que o requer. Portanto, os dons que o Espírito Santo confere aos crentes devem ser empregados com amor para o benefício espiritual e material da igreja (veja Rm 12.4-8).

Em seguida, Paulo se concentra num longo trecho sobre a questão das línguas. Ao escrever o capítulo 14, o apóstolo imagina um culto público. Seu intuito é corrigir a maneira equivocada com que este dom estava sendo exercido no culto como sinal de imaturidade espiritual dos crentes da igreja de Corinto (3.1-4). Assim, ele esboça algumas características do dom de línguas com relação aos crentes. Senão vejamos:

a) A natureza das línguas (vs.2)

Paulo afirma que aquele que fala em uma língua humana γλωσση (glossa) não interpretada no culto público não comunica nenhuma mensagem que tenha sentido às pessoas ali reunidas, pois elas não são capazes de entender o que está sendo dito; como consequência, não há edificação ou instrução alguma. Logo, somente Deus entende o que está sendo transmitido em outra língua.1

Em Atos 2.4-11, todos os judeus estrangeiros [aqueles que residiam em outros locais onde se falava outras línguas] que estavam reunidos em Jerusalém para a festa do pentecostes compreenderam os idiomas humanos ou dialetos διαλέκτω (dialektos) que foram falados pelos apóstolos. Este não foi um milagre “auditivo”, onde a multidão ali reunida foi miraculosamente capacitada a entender em sua própria língua aquelas palavras. Antes, o milagre foi realizado nos apóstolos, os quais falaram sobrenaturalmente idiomas que desconheciam.
No texto a lume, Paulo não menciona nada referente à interpretação. Pelo contrário, ele escreve que a mensagem transmitida em outra língua sem interpretação não é dirigida às pessoas, como no pentecostes, mas a Deus. Assim, os pentecostais e neopentecostais sugerem que as línguas faladas na igreja de Corinto e nas igrejas do século 1 não eram idiomas, como no pentecostes, mas uma língua espiritual incompreensível aos homens, talvez até uma língua de anjos (1Co 13.1), visto que somente Deus a entende.2

Porém, a expressão ainda que eu falasse a língua dos anjos em 1 Coríntios 13.1 é uma hipérbole, isto é, uma figura de linguagem que aumenta ou diminuiu exageradamente uma verdade. Desse modo, Paulo não diz que ele falava a língua dos anjos, pois o texto não menciona nada acerca da natureza da língua falada pelos anjos; ele também não afirma sobre a possibilidade de os crentes falarem a língua dos anjos.

Antes, o apóstolo descreve que ainda que fosse possível ele falar na língua dos anjos [e se realmente existe esta língua], e tivesse todos os dons (13.2), mas se não tivesse amor, ele não seria nada. Portanto, assim como no pentecostes, as línguas descritas em 1 Coríntios 14 também são idiomas humanos.

No fenômeno moderno das falsas línguas, podemos notar que as supostas interpretações são geralmente repreensões, revelações de segredos, predições vagas do que Deus está por fazer e exortações gerais muitas vezes indefinidas. Uma vez que os pentecostais e neopentecostais afirmam que o que fala em línguas dirige-se a Deus, e não aos homens, as interpretações deveriam ser uma mensagem do “homem para Deus”, e não de “Deus para o homem”! Com isso, percebemos um concomitante anacronismo em relação ao verdadeiro dom de línguas!

b) O meio pelo qual as línguas são emitidas (vs.2c)

Se alguém que fala em uma língua humana não interpretada não fala às pessoas, mas a Deus, visto que somente Ele entende o que está sendo falado, isto é através do “espírito”. A palavra grega πνενματι (pneuma) pode ser traduzida se referindo tanto ao “espírito” humano quanto ao “Espírito Santo”. Assim, fica difícil saber com exatidão se Paulo faz menção ao “espírito humano” ou ao “Espírito Santo”.3

Dentro do contexto do capítulo 14, Paulo salienta o “espírito humano” duas vezes (vs.14,32). Pessoalmente, acredito que ele tinha em mente aqui o “espírito humano”. Então, aquele que falava em línguas, o fazia pela atuação do Espírito Santo “em seu espírito” sem transmitir a informação à mente. Por isso, aquele que falava em línguas “em espírito” não entendia o que falava.

c) O conteúdo das línguas (vs.2c)

Paulo, agora, declara que aquele que fala em línguas estrangeiras fala a Deus mistérios. Ele utiliza esta palavra no capítulo 4.1, onde se refere aos ministros do evangelho como despenseiros dos mistérios de Deus. Ele utiliza esta mesma expressão no capítulo 2.7-9 para enfatizar Cristo e o Evangelho que foi revelado como o mistério de Deus que esteve oculto na eternidade (veja também Cl 2.2).

No capítulo 13.2, Paulo ressalta que conhecer todos os mistérios é algo pertencente ao profeta. Estes mistérios que eram revelados aos profetas das igrejas locais do Novo Testamento se tratavam da exposição verbal dos aspectos do mistério de Cristo que fora revelado aos apóstolos e, por conseguinte, registrado nas Escrituras. Comunicar os mistérios não é adivinhar os segredos das pessoas presentes no culto através de uma suposta revelação como fazem os “profetas” modernos. Antes, é simplesmente anunciar o grande mistério de Cristo.

Todavia, poderíamos interpretar que os mistérios que Paulo se refere aqui em 1 Coríntios 14 é o mistério de Cristo, embora seja empregado o plural – mistérios. A lógica desta interpretação é que aquele que fala em línguas transmite o Evangelho a Deus. Contudo, qual é o sentido disso? Nenhum!

Também devemos rejeitar a interpretação que ressalta os mistérios como sendo segredos conhecidos somente por Deus e por aqueles que falam em línguas. Não existem “crentes especiais” ou mais iluminados que possuem acesso a segredos particulares com Deus.

Esta interpretação, além de ser gnóstica, é vigente em ramificações heréticas como o adventismo, mormonismo, o neopentecostalismo, entre outras. Deus não têm filhos preferidos; Ele revelou o Evangelho a todos os crentes. Outra interpretação que deve ser rejeitada é que o dom de línguas foi concedido para os crentes se comunicarem com Deus de forma mais espiritual, uma vez que falam mistérios.

Não obstante, o meio que Deus concedeu aos crentes para se comunicarem com Ele é a oração realizada na própria língua. Então, o que significa falar pelo espírito mistérios? Paulo está simplesmente dizendo que, quando um idioma desconhecido é falado no culto sem haver tradução, a mensagem divulgada é “misteriosa” ou incompreensível para os ouvintes.4

Calvino ratifica esta interpretação em seu Comentário Expositivo de 1 Coríntios, dizendo que o termo mistérios possui um sentido negativo, “como sendo certas expressões ininteligíveis, confusas, enigmáticas, como se Paulo tivesse escrito: ninguém entende uma só palavra do que ele [o que fala línguas] diz”.5

d) O foco equivocado das línguas (vs.4a)

Prosseguindo sua argumentação, Paulo acentua que aquele que fala em línguas edifica6 a si mesmo. Este trecho de difícil interpretação é o favorito dos pentecostais e neopentecostais na defesa do falar em línguas em particular para a edificação individual. Esta ideia foi chamada de o “dom de pijamas”, referindo-se ao ato de falar em línguas em privado. Carlos Ortiz foi o criador desta expressão.

Por conta de uma interpretação equivocada deste trecho, ele assegurou que, diferentemente dos outros dons, que foram conferidos para a edificação coletiva [da igreja], as línguas foram conferidas especialmente para a edificação individual do crente, como um tipo de hábito privado a ser realizado pelo crente em casa, a sós com Deus.

Apesar de alguns continuacionistas afirmarem que não deve haver línguas no culto sem interpretação, através desta passagem eles apoiam o hábito de falar em línguas em particular. Entretanto, se analisarmos meticulosamente o contexto imediato de 1 Coríntios 14, abrangendo também o capítulo 12, 13, Atos 2, e o contexto teológico das línguas, entenderemos que Paulo não está ensinando aqui uma prática das línguas como um devocional privado. O apóstolo não ensina que este é o propósito das línguas! Sendo assim, vejamos algumas razões que demonstram outro entendimento:

i. Conforme disse anteriormente, quando escreveu 1 Coríntios 14, Paulo tinha em mente um culto. Ele imagina a igreja reunida para um culto de adoração a Deus quando trata da questão da profecia e das línguas. Era como se Paulo fosse visitar a igreja quando estivesse reunida para o culto público.

Desse modo, o apóstolo relata o que acontece quando os irmãos se reúnem para o culto (vs. 26), e, assim, tece as diretrizes necessárias com relação ao uso adequado dos dons no culto (vs. 27-40). Ele imagina o caso de um irmão falando em línguas e os demais irmãos ao seu redor não entendendo o conteúdo do que está sendo emitido verbalmente (vs.9,16-17). Ele afirma enfaticamente que, ao estar presente num culto público, prefere instruir os irmãos na própria língua em vez de falar muitas palavras em línguas humanas desconhecidas para eles (vs.19). Ainda que de forma implícita, vemos aqui a preocupação de Paulo com a edificação coletiva.

No versículo 12, o apóstolo orienta os irmãos da igreja em Corinto a progredir nos dons espirituais, tendo em vista a edificação da igreja como um todo, e não a edificação pessoal do crente. Portanto, no capítulo 14, vemos orientações acerca de como deve ser o procedimento dos crentes no exercício dos seus dons no culto público. Por outro lado, nesta primeira carta a igreja de Coríntios, Paulo orienta os crentes a fazerem algumas coisas no âmbito privado [ou seja, em suas próprias casas], e não na igreja. Ele escreve que os crentes, antes de participar da celebração da santa ceia, devem comer em casa (11.34).

Caso houvesse dúvidas bíblicas por parte das mulheres no culto, elas deveriam buscar o esclarecimento em casa, indagando os seus próprios maridos ao invés de interromper o progresso do culto com interpelações (14.35). E, finalmente, os crentes deveriam reunir o dinheiro das contribuições para os crentes da Judéia em casa (16.2). Portanto, se os crentes não poderiam falar em línguas no culto sem haver tradução, mas pudessem fazer isso em particular, seria bem provável que Paulo escrevesse orientações claras acerca desta prática, como fez nos casos supramencionados.

Diante disso, percebemos que Paulo não escreve nenhuma orientação sobre o uso das línguas sem interpretação no âmbito privado. Neste capítulo ele está discorrendo sobre questões relacionadas ao culto, isto é, quando alguém fala em línguas sem haver a tradução. Logo, os continuacionistas não podem utilizar este trecho para justificar o hábito de falar em línguas em particular.

ii. A edificação ensinada por Paulo ocorre somente quando os crentes compreendem as questões de Deus exercidas pelos dons no culto. Sendo assim, a ideia de alguém edificar a si mesmo através do hábito de falar em particular uma língua estrangeira sem interpretação foge do padrão estabelecido por Paulo. Acerca da contradição existente na auto edificação, Charles Hodge, em seu Comentário de 1 Coríntios, escreve que aquele que fala em línguas “se edifica porque entende a si mesmo”.7 A interpretação de Hodge é interessante, porém se depara com o versículo 14, que diz que aquele que fala em línguas não entende o que está dizendo.

D.A.Carson, que apoia o hábito de falar em línguas sem tradução em privado, foge das evidentes implicações descritas no capítulo 12.7. Lá, Paulo assevera que os dons do Espírito são conferidos para o que for proveitoso, e que, no contexto, refere-se ao que for proveitoso para [ou que beneficie] a igreja. Carson reconhece isso, e afirma que, de acordo com este trecho, “não existe nenhum benefício direto [para aquele que fala em línguas sem tradução em particular]”.8

Porém, o argumento de Carson de que as línguas faladas em secreto traz algum tipo de “benefício indireto” é tendencioso e incongruente. A prova que ele utiliza para sustentar esta afirmação é ínfima e forçada. Ele escreve:

Todavia, a Paulo foram concedidas visões e revelações extraordinárias que objetivavam somente seu beneficio imediato (2Co 12.1-10); contudo, certamente a igreja recebeu ganhos indiretos, pois essas visões e revelações, para não mencionar a questão do espinho na carne, o capacitaram mais para o seu ministério e proclamação. […] É difícil ver como o versículo 7 torna ilegítimo o uso privado do falar em línguas se o resultado é uma pessoa melhor, um cristão com mais consciência espiritual: a igreja pode sim receber benefícios indiretos.9

Não existe a comparação entre o que Paulo ensinou sobre os dons espirituais com as experiências espirituais que ele teve em particular. Também não existe nas cartas de Paulo uma proibição contra experiências espirituais particulares. Porém, o ato de falar em línguas humanas é visto como um dom que foi concedido pelo Espírito Santo a alguns para o beneficio da igreja (veja Ef 4.11-12; 1Pe 4.10-11). Portanto, o argumento de Carson, que diz que a igreja recebe um “benefício indireto” com aquele que fala em línguas em particular é frágil demais para acreditarmos, uma vez que a experiência espiritual não edifica em si a igreja numa forma coletiva, mas apenas a pessoa que teve.

iii. Por outro lado, na tentativa de manter o equilíbrio na interpretação deste trecho, Augustus Nicodemus Lopes sugere uma posição intermediária. Ele escreve:

Paulo está admitindo que existe algum benefício espiritual para o que fala em línguas, mas que não é a edificação que ele deseja para a igreja, apesar de usar a mesma palavra. Seria uma espécie de compensação quando não houvesse intérprete na igreja, como um consolo ao que falou mas não foi entendido. Paulo admite que o espírito de quem ora, canta e bendiz a Deus em línguas, mesmo sem compreender o que diz (a mente permanece infrutífera) recebe algum tipo de beneficio. (vs.14-17). Ele mesmo recomenda que, no caso de não haver intérprete, o que fala em línguas “fale consigo mesmo e com Deus”, como uma espécie de consolo diante da ordem para calar-se (14.28).

Isso, entretanto, não significa que o apóstolo encoraja a prática das línguas em privado. O beneficio que a mesma traz, na opinião do apóstolo, é inferior à edificação recebida na comunidade, pelo ministério dos outros irmãos, pelos dons espirituais. A compensação para o que fala em línguas é somente no caso de não haver intérprete na igreja. É bastante diferente alguém querer falar línguas em privado, já sabendo de antemão que não haverá interpretação.

Como entender, então, as experiências relatadas por cristãos sinceros de que experimentaram o falar línguas a sós? Pessoalmente, creio que Deus pode fazer exceções, mas o que ele nos ensina no Novo Testamento é que as línguas, juntamente com os demais dons do Novo Testamento, foram dados para a edificação da igreja e deveriam ser exercidos durante os cultos.

Talvez pudéssemos justificar o uso do dom de línguas em particular lembrando que dons como o de curar, socorros e milagres provavelmente eram exercidos também fora do ambiente de culto. Porém, olhando o argumento mais de perto, vemos que há uma diferença fundamental: curas, milagres e socorros, exercidos em particular, sempre são administrados por alguém a outro alguém. No fim, acaba sendo um membro da igreja edificando outro membro da igreja. O mesmo não pode ser dito no caso de falar línguas a sós.10

O problema desta “interpretação intermediária”, embora seja atraente, consiste no fato de não haver nenhuma informação clara nas cartas de Paulo sobre a ideia de uma edificação parcial [“compensação”, segundo pressupõe Nicodemus] quando um dom espiritual [no caso, as línguas] não é usado da forma que foi estabelecida. Basear-se nos versículos 14-17 não soluciona o problema; é apenas uma fuga mal sucedida!

Neste trecho, especialmente os versículos 16-17, Paulo, de fato, elogia aquele que louva a Deus. Ele não censura as expressões de gratidão a Deus, mas, sim, o modo em que este agradecimento é manifesto, ou seja, em línguas não interpretadas. Paulo repreende aquele que ora em línguas pela desconsideração para com o próximo, pois a pessoa não entende o que está sendo transmitido em outra língua e, portanto, não recebe nenhum benefício espiritual. Assim, o versículo 17 é uma altissonante censura desferida ao que fala em línguas no culto sem interpretação, visto que privou o seu próximo da edificação.

Diante do fracasso das interpretações que tentaram sanar a dificuldade existente no versículo 4, qual seria a melhor interpretação? O que Paulo quis dizer quando escreveu que aquele que fala em línguas edifica a si mesmo?

Segundo o meu entendimento, Paulo escreveu o versículo 4 em um tom de ironia. Esta é uma figura de linguagem que esboça uma censura disfarçada de aprovação. É o oposto do que se quer dizer, porém sempre ressaltando o sentido verdadeiro da afirmação. Era como se Paulo estivesse declarando uma verdade – o que fala em línguas edifica a si mesmo – no entanto, esta “aparente verdade” é uma ironia! Nesta mesma carta Paulo escreve outra verdade em tom de ironia (veja 1Co 4.6-8). Existem formas de ironia nas Escrituras que são praticamente sarcasmos (veja 1Sm 26.15; 1Rs 18.27).

Portanto, a melhor interpretação para o versículo 4 seria entendermos a declaração de Paulo como uma ironia ao Coríntios. Eles estavam abusando do uso do dom de línguas para exibirem uma “espiritualidade superior” aos demais; na verdade não passava de uma falsa espiritualidade egoísta e equivocada (3.1-4). Os dons espirituais eram um símbolo de status para os imaturos Coríntios!

Interpretando o versículo 4, John Stott ratifica que “certamente deve existir pelo menos uma ponta de ironia no que Paulo escreve, porque a frase praticamente se contradiz em seus termos. A auto edificação está completamente fora de cogitação quando o Novo Testamento fala de edificação.11

Não obstante, para fortalecer sua argumentação sobre a necessidade do entendimento das línguas faladas para que a igreja seja edificada, Paulo utiliza como exemplo três ilustrações. Ele fala sobre os instrumentos musicais (vs.7), uma trombeta tocada que alerta sobre a preparação para uma batalha (vs.8), e as conversas interpessoais (vs.9-11).

O versículo 6 é uma introdução para as ilustrações subsequentes. Paulo pergunta aos Coríntios qual seria o benefício que obteriam se ele fosse visita-los e ministrasse na igreja deles num idioma desconhecido. A resposta é: nenhum benefício! Haveria, sim, benefício se o apóstolo ministrasse na língua própria, quer fosse como profeta [revelação e profecia] ou como mestre [ciência e doutrina]. O tema desta seção poderia ser resumido numa frase: A manifestação dos dons espirituais no culto deve ser inteligível para que haja a edificação de todos!

Por mais que as línguas sejam espirituais, se não forem interpretadas, irão produzir o mesmo som confuso que os instrumentos musicais soam quando são tocados por leigos, é o mesmo que dizer de alguém que não sabe o toque de preparação de uma trombeta para a guerra, e é como se houvesse uma conversa entre dois estrangeiros que não entendem o idioma um do outro. Senão vejamos:

i. Os instrumentos musicais (vs.7)

Se uma pessoa que é leiga na música decide tocar uma flauta ou uma harpa, o som que emitirá destes instrumentos será indefinido e confuso.

ii. A trombeta (vs.8)

De modo semelhante à questão da música, se uma pessoa produzir um sonido indefinido com a trombeta, visto que desconhece o sonido que deve ser tocado, como um exército se preparará para a batalha? Haverá confusão ao invés de preparação.

iii. As conversas interpessoais (vs.9-11)

Imagine você, um brasileiro, conversando com um alemão. Ambos desconhecem a língua um do outro. Portanto, a conversa será vã, pois não houve a compreensão da mesma. Através destas ilustrações, Paulo ensina que se alguém falar em outra língua sem interpretação no culto, a igreja não poderá ser edificada, visto que o idioma falado é incompreensível para as outras pessoas (vs.11). Para que ocorra a edificação deve haver o entendimento.

Continua nos próximos dias…

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Notas:
[1] A expressão não fala a homens, senão a Deus, é comumente usada por alguns estudiosos para confirmar que as línguas que Paulo salienta em 1 Coríntios 14 não são idiomas humanos. Porém, a expressão somente demonstra que as línguas são “uma forma de oração” (veja 14.14-15). Em Atos 2.11; 10.46, as línguas, aparentemente, eram uma forma de oração e louvor a Deus distintos da profecia (veja também Atos 19.6).
[2] Alguns estudiosos deduzem pela expressão “outras línguas”, que ocorre algumas vezes em 1 Coríntios 14, como um sinal de que Paulo está se referindo a uma língua espiritual diferente das línguas humanas. No entanto, a palavra “outras” não aparece no grego, e trata-se de um acréscimo de interpretação dos tradutores para o português.
[3] Charles Hodge, em seu Comentário Bíblico de 1 Coríntios, defende que Paulo se refere no versículo 2 ao Espírito Santo, e não ao espírito humano. Ele ressalta que “as Escrituras não fazem distinção entre o “nous” (mente) e o “pneuma” (espírito) como faculdades diferentes da inteligência humana”. Porém, o apóstolo traça esse contraste nos versículos 14 e 15.
[4] Augustus Nicodemus Lopes corrobora que quando o Senhor apareceu a Paulo no caminho de Damasco, falou-lhe em língua hebraica (At 26.14). Seus companheiros, possivelmente soldados romanos cedidos por Pilatos aos principais sacerdotes para prender os cristãos, viram a luz, ouviram a voz, mas não a entenderam (“ouviram”, veja At 22.9), visto que não falavam hebraico. A voz soou como um perfeito mistério para eles. Talvez devamos interpretar 1 Coríntios 14.2 nesse sentido (O culto espiritual, pág 195).
[5] Calvino. 1 Coríntios, pág 414.
[6] A palavra edificar significa literalmente “construir”; traz a ideia de se construir cidades, casas ou sinagogas. É aplicada figuradamente à igreja como um todo (veja Mt 16.18; Rm 14.19; 15.2; 1Co 3.9; Ef 2.20-21; 1Ts 5.11; 1Pe 2.5). Desse modo, edificar passou a ser usada no sentido coletivo de “fortalecer uns aos outros”; “fazer com que os outros cresçam em maturidade espiritual”. Estas bênçãos espirituais só acontecem quando os dons são ministrados aos outros como igreja.
[7] Charles Hodge. 1-2 Corínthians, pág 281.
[8] D. A.Carson. A manifestação do Espírito. A contemporaniedade dos dons à luz de 1 Coríntios 12-14, pág 37.
[9] Ibid.
[10] Augustus Nicodemus Lopes. O culto espiritual, pág 198-199.
[11] John Stott, em o Batismo e Plenitude do Espírito Santo, na seção acerca do “propósito dos dons espirituais”.

 

2. A aplicação do dom de variedade de línguas e sua relação com os não crentes (14.12-25)

Tendo tratado acerca do dom de línguas relacionado aos crentes, Paulo, agora, discorre sobre o dom de línguas relacionado aos não crentes. O apóstolo enfatiza a importância da mente para o entendimento do que ocorre no culto público. Ele ensina que os atos “no Espírito” envolvem o uso do intelecto (vs.12-17), e instrui os coríntios no uso das línguas em face dos visitantes no culto (vs.20-25).

a) A aplicação das línguas (vs.12-25)

Paulo aplica o princípio do entendimento das línguas ao crente que as fala, aos demais crentes da congregação e, por fim, aos não crentes. Vejamos:

i. O princípio do entendimento das línguas aplicado ao próprio crente que as fala (vs.12-14)

A parte a do versículo 12 é a conclusão do versículo anterior. Tendo utilizado a ilustração de dois estrangeiros que conversam entre si, porém ambos desconhecem o idioma um do outro, Paulo conclui o versículo, dizendo: Assim também vós. Era como se o apóstolo dissesse: “Isso também acontece entre vocês quando há línguas não traduzidas no culto”.

Todavia, Paulo reconhece que os coríntios desejavam ter os dons espirituais; e ele não os repreende por isso (12.31; 14.1,39). Antes, Paulo os corrige com relação ao modo pelo qual pensavam em obter os dons; os coríntios desejavam os dons como se fosse uma expressão de espiritualidade superior. Assim, Paulo emprega a edificação da igreja como o alvo da busca pelos dons espirituais. Era com este pensamento que os crentes deveriam exceder nos dons espirituais que fossem mais adequados para isso.

No versículo 13, ele instrui os crentes em como as línguas deveriam ser exercidas no culto para que houvesse a edificação da igreja. Ele escreve que se alguém possui o dom de línguas, esta pessoa deve orar para que a possa interpretar. Como entender esta expressão? Aquele que falava em línguas no culto não entendia o que estava dizendo. Se ele entendia, por que orar pela interpretação? O objetivo de quem falava em línguas não era em si a auto edificação, mas buscar com que os outros fossem edificados. Para isso, o falante deveria orar para que pudesse traduzir as línguas.

À primeira vista, parece que Paulo está ensinando que a mesma pessoa que fala em línguas também pode interpretá-las. Porém, esta interpretação contradiz a regra estabelecida por Paulo com relação ao entendimento das línguas no culto, ou seja, que uma pessoa falasse em línguas e outra pessoa as traduzisse. Variedade de línguas e interpretação de línguas são dons distintos conferidos a pessoas distintas nas duas listas de dons que Paulo descreveu nesta carta (12.10,30).

Quando o apóstolo trata do uso das línguas no culto, ele demonstra que uma pessoa falava em línguas e outra as interpretava (vs.26-27). O sinal para que o falante em línguas deveria se calar era a ausência do tradutor (vs.28). Portanto, a melhor interpretação, seria entender que Paulo estava orientando aquele que falava em línguas a orar para que Deus concedesse o dom de interpretação de línguas a outro; assim, como resposta de oração, o que falava em línguas teria a sua mensagem traduzida.

Para confirmar a sua instrução, Paulo enumera alguns motivos utilizando como exemplo a oração e o ato de louvar a Deus em línguas (vs.14-15). Vejamos:

1) Paulo escreve hipoteticamente como se estivesse participando de um culto público. A sentença inicial do versículo 14 implica uma “condição” – Porque se eu orar.

Paulo não diz que ora em um idioma estrangeiro no culto; pelo contrário, ele apenas afirma o que aconteceria se orasse em uma língua desconhecida dos irmãos da igreja em Corinto: o seu espírito estaria orando e recebendo a atuação direta do Espírito Santo, o que é algo bom, porém não seria a forma adequada de exercer o dom, uma vez que a mente estaria ausente para a compreensão intelectual do conteúdo da mensagem em línguas.

Assim, não somente o falante em línguas não entenderia a sua oração, mas também os demais irmãos na igreja. Por isso Paulo escreve [utilizando ele mesmo como exemplo] que a mente daquele que falava em línguas sem interpretação no culto ficaria infrutífera, e que ele, se estivesse participando de um culto, preferia instruir os irmãos na própria língua do que o fazer em outra língua que fosse desconhecida (vs.19).

Adiante, Paulo declara que deve haver um equilíbrio no exercício do dom de línguas no culto público. A maneira adequada, diz o apóstolo, seria orar com o espírito e utilizar a mente para a compreensão (vs.15). Note que Paulo deixa claro que orar em línguas sem o uso da mente é fazer mau uso do dom e, portanto, um erro que deve ser evitado (vs.16-17). “Espírito” [humano] e mentes estão conectados, e ambos devem ser usados no exercício do dom de línguas para que haja a edificação da igreja. Paulo quer dizer que ele [e o que possuí o dom de falar em línguas estrangeiras] deve orar numa língua conhecida por todos no culto para que haja o entendimento mental.

Simon Kistemaker esclarece:

Como o espírito e a mente funcionam? A mente humana, que tem a capacidade de pensar e entender, está intimamente ligada ao espírito humano. Quando o Espírito Santo controla tanto o espírito como a mente, uma pessoa geralmente viceja e prospera. Mas quando o espírito humano não é governado pelo Espírito Santo, a mente permanece espiritualmente ociosa e o resultado é a esterilidade. […] É possível o espírito e a mente funcionarem separadamente, mas Paulo dá a entender que o espírito e a mente de uma pessoa precisam estar envolvidos igualmente para serem produtivos.

O espírito e a mente devem operar juntos no exercício da oração para pronunciar palavras inteligíveis. Precisam edificar os membros da igreja que ouvem essas palavras. Portanto, Paulo insiste que os coríntios orem num idioma que seja conhecido por todos os que estão presentes no culto. Ele diz aos coríntios que tanto o espírito como a mente devem orar com eficácia para o benefício da igreja.12

Calvino escreve:

Se alguém era dotado com o dom de línguas e falava de forma simples e inteligível, então seria estranho que Paulo falasse de “o espírito ora, porém o entendimento fica infrutífero”, pois o entendimento deve agir em sintonia com o espírito. […] Portanto, se formulo orações numa língua que não é conhecida, e o espírito [humano] me supre com palavras, é evidente que o próprio espírito que regula minha língua, nesse caso orará, minha mente, porém, ou estará vagando sem rumo ou, ao menos, não tomará parte alguma na oração.13

Por outro lado, o mesmo acontece com o louvor entoado a Deus em línguas (vs.15). Paulo ressalta que ele [e outro que possua o dom de falar em línguas estrangeiras] pode cantar em “espírito”, porém utilizando a mente como o meio de entendimento do conteúdo do louvor. Todavia, reconhecendo a prática equivocada do cantar em línguas sem tradução, a qual é vigente em algumas em ramificações pentecostais e neopentecostais, Carson observa corretamente que “não existe evidência de que isso justifique uma total participação da congregação. Para começar, isso violaria o princípio de Paulo de que nem todos têm o mesmo dom; e, além disso, uma vez que isso também é uma forma de falar em línguas, a interpretação deve ser exigida”.14

O segundo motivo que Paulo salienta para corroborar suas orientações acerca do uso adequado das línguas no culto, utilizando como exemplo a oração e o ato de louvar a Deus em línguas, encontra-se no próximo sub tópico:

ii. O princípio do entendimento das línguas aplicado aos demais crentes da congregação (vs.16-20)

2) No versículo 16, Paulo afirma que, se alguém realizar uma oração a Deus em outro idioma no culto público, o indouto não poderá dizer amém, pois não compreende o que foi dito. Como Paulo tinha mente um culto imaginário ao escrever o capítulo 14, temos, aqui, um diálogo hipotético ou imaginário. O apóstolo supõe um diálogo com um crente “espiritual” que tinha o hábito de orar em línguas durante o culto sem preocupar-se com o indouto ao seu lado. Sendo assim, quem seria este indouto?15 Existem duas possibilidades acerca da identidade desta pessoa.

A primeira possibilidade é que o indouto seria um descrente que visita um culto público da igreja. Este indouto é identificado como alguém que não é instruído na Palavra de Deus. Esta palavra forma um par com a palavra incrédulo no versículo 23, referindo-se a alguém que visita a igreja. Se o indouto for mesmo um “descrente” que participa de um culto público, seria estranho ele dizer amém após presenciar os demais crentes “adorando a Deus” através de orações de gratidão e louvores. A segunda possibilidade é que o indouto é alguém que não possui o dom de interpretação de línguas ou que desconhece o idioma que está sendo falado. Em outras palavras, era um leigo, uma pessoa simples (NTLH), mas um crente.

A palavra indouto ιοιωτον (idiotes), no grego, significa “desinformado”; “alguém que não é instruído”. Portanto, acredito que a segunda possibilidade é a melhor interpretação; ou seja, o indouto é um crente simples que não possuía o dom de interpretar línguas humanas ou que desconhecia o idioma que era falado no culto (vs.23-24). Era um “indagador” cuja posição estava entre o descrente e o crente mais informado.16 O cerne deste problema não é a incapacidade do indouto para entender as verdades da fé cristã, mas a incapacidade de entender o idioma falado no culto sem a tradução.

Prosseguindo o seu argumento, Paulo faz uma pergunta hipotética ou imaginária aquele que fala em línguas no culto público: E, se tu bendisseres apenas em espírito, como dirá o indouto o amém depois da tua ação de graças? O indouto ou a pessoa como menos instrução não poderá dizer amém17 às ações de graças daquele que fala em línguas estrangeiras, visto que o tal não compreende o que está sendo dito. Acerca do significado da palavra amém, Augustus Nicodemus Lopes escreve:

O povo de Deus no período do Antigo Testamento, por vezes, expressava seu assentimento à Lei e seu desejo de submeter-se a ela dizendo “amém” após a sua leitura (Dt 27.15; Ne 5.13). Às vezes, diziam “amém” em aquiescência à oração de outros (1 Rs 1.36) ou em ação de graças (1 Cr 16.36; veja SI 106.48). As igrejas cristãs primitivas seguiram o exemplo de Israel em associar-se audivelmente com as orações e ações de graça em seu favor. O artigo definido antes de “amém” (o amém) em 1 Coríntios 14.16 mostra que essa era a prática comum.18

No entanto, se a oração era realizada em outro idioma, os menos informados não poderiam dizer amém. No versículo 17 temos uma repreensão. Paulo não tece uma crítica ao ato de gratidão que o falante em línguas presta a Deus em oração, pois é algo bom; antes, ele critica a forma que a oração é realizada – em línguas. O apóstolo censura aquele que ora em línguas pela desconsideração para com os desinformados, os quais não recebem nenhum benefício espiritual porque não entendem o idioma falado.

Concluindo as razões que confirmam suas orientações sobre o uso adequado do dom de línguas no culto público, Paulo escreve no versículo 18: Dou graças a Deus, porque falo em outras línguas mais do que vós. Praticamente não sabemos de nenhuma situação em que Paulo falou em línguas estrangeiras. Não há nenhum registro no livro de Atos e nas cartas de Paulo que denote que ele falou em vários idiomas em diferentes lugares.

É somente por meio dessa revelação pessoal, feita com o objetivo de reforçar seu argumento contra o uso das línguas não interpretadas na igreja, que sabemos que o apóstolo também falava em línguas. Falar em línguas fez parte da experiência dos demais apóstolos pelo menos uma vez, no Pentecostes (At 2.4), e, provavelmente, fazia parte do equipamento sobrenatural mencionado por Paulo em 2 Coríntios 12.12 que visava autenticar o ministério apostólico.19

Apesar de falar mais idiomas humanos que os coríntios pelo poder do Espírito Santo, percebemos, com esta afirmação, que Paulo se mostrava bastante reservado com relação ao uso deste dom. A repreensão contra a prática inadequada das línguas no culto não era porque Paulo não tinha a experiência pessoal de falar em línguas; pelo contrário, ele falava mais línguas estrangeiras que os demais crentes em Corinto. Aparentemente, este dom não consistia apenas na habilidade de falar uma mesma língua pelo poder sobrenatural Espírito Santo, mas várias línguas.20

Por vezes, os pentecostais e neopentecostais costumam argumentar que se os crentes tradicionais, opositores do hábito de falar em línguas “estranhas”, experimentassem este dom, indubitavelmente mudariam de opinião. Entretanto, vimos que Paulo falava vários idiomas humanos e mesmo assim era reservado quanto ao uso que os coríntios faziam desse dom nos cultos.

Em seguida, no versículo 19, Paulo acentua que, mesmo que fosse capaz de falar milhares de palavras em idiomas estrangeiros, ainda assim preferia falar na igreja poucas palavras na própria língua para que houvesse o entendimento da mensagem e a igreja fosse edificada. A preferência do apóstolo em instruir a igreja numa língua conhecida por todos não deveria ser observada pelos pentecostais e neopentecostais? Eles não deveriam refrear o uso inadequado que fazem das “supostas línguas” nos cultos? Ou eles não desobedecem as regras estabelecidas por Paulo nos versículos 27-28? Claro que sim! Não somente dois ou três falam em línguas no culto, mas vários, ao mesmo tempo e sem tradução.

Não obstante, para corroborar a prática da “oração em línguas” no âmbito privado, os pentecostais e neopentecostais citam como base os versículos 18-19. Segundo eles, Paulo tinha o hábito de orar em línguas em secreto. D.A. Carson afirma:

Não há defesa mais firme para o uso privado do falar em línguas do que essa [passagem demonstra], e tentativas de evitar essa conclusão se tornam marcantemente insignificantes sob exame. […] Não adianta supor que Paulo está aconselhando o uso privado e silencioso de línguas durante um culto, enquanto outro ministra. […] Já vimos que Paulo vê a oração com o espírito como uma forma válida de oração e adoração; o que ele não permitirá é a não inteligibilidade na igreja. A única conclusão possível é que Paulo exercia seu impressionante dom de línguas em particular.21

Carson tenta extrair dos versículos 18-19 o que Paulo não disse, ou pelo menos não deixou claro em nenhuma de suas cartas. Ele não especificou quando ou onde falou em diferentes línguas humanas. Alegar que Paulo tinha e ensinou o hábito da “oração em línguas em particular” é uma especulação pífia. Conforme assegura John MacArthur:

Em 1 Coríntios 14, Paulo certamente não fez uma apologia ao uso privado e egoísta do dom de línguas. Ao contrário, ele confrontava o orgulho da congregação de Corinto. Eles achavam que eram superiores porque alguns deles falavam em dialetos que eles não conheciam; mas Paulo, que tinha milagrosamente falado em línguas estrangeiras mais do que qualquer um deles, queria que entendessem que o amor superava qualquer dom, não importava o quão espetacular ele fosse. Quando Paulo exercia seus dons dentro do corpo de Cristo, sua prioridade sempre era a edificação de outras pessoas na igreja. Qualquer noção do uso autocentrado de um dom teria prejudicado todo o argumento do apóstolo em 1 Coríntios 12-14.22

iii. O princípio do entendimento das línguas aplicado aos não crentes (vs.21-25)

Quando Paulo estivesse na igreja para ensinar, preferia falar palavras inteligíveis a falar em um idioma desconhecido por todos. Sendo assim, onde o dom de línguas se encontra no plano de Deus? Anteriormente, Paulo havia exortado severamente os coríntios, dizendo que não podia trata-los como crentes maduros ou espirituais, pois ainda eram meninos na fé, imaturos e carnais, e praticavam os pecados dos descrentes (3.1-4).

Os termos meninos ou crianças são usados de modo figurado nas Escrituras para expressar a deficiência que alguns crentes possuem quanto ao entendimento espiritual das coisas de Deus. Enfatiza um estado de ignorância ou de confusão intelectual das doutrinas da fé cristã em oposição ao entendimento e a sabedoria (Mt 11.16-17; Ef 4.14; Hb 5.11-14). Assim, os coríntios possuíam um entendimento deficiente e confuso acerca das línguas. A paixão que demonstravam por este dom confirmava isso. Eles deveriam ser crianças na maldade, e adultos no entendimento (vs.20). John MacArthur escreve:

Com relação ao mal, os coríntios eram qualquer coisa menos meninos. Eles estavam altamente avançados em todo tipo de pecado. Eles tiveram praticamente todas as manifestações da carne e quase nenhuma do fruto do Espírito (Gl 5.19-23). Eles eram meninos agitados de um lado para o outro e levados ao redor por todo vento de doutrina (Ef 4.14). Pelo seu desejo egoísta de se auto edificarem, abusaram do dom de línguas e estavam, entre outras coisas, ignorando o resto da família de Deus.23

Senão vejamos a maneira em que as línguas são aplicadas aos descrentes:

b) A função e o propósito das línguas (vs.21-22)

Nesta perícope, que abarca os versículos 21-22, Paulo esboça a questão das línguas na história do relacionamento entre Deus e o seu povo. Ele cita no versículo 21 Isaías 28.11-12, dizendo que “as línguas faladas por povos estrangeiros funcionavam em determinados contextos como sinal do juízo de Deus sobre a nação de Israel (Is 14.21)”.24 Augustus Nicodemus Lopes observa:

Isaías estava simplesmente aplicando ao povo rebelde de seus dias as ameaças que Moisés havia feito, em caso de desobediência. Entre as maldições que Deus havia determinado contra seu povo, quando o rejeitasse, estava a invasão por povos estrangeiros (veja Dt 28.49,50). Os profetas que vieram depois de Moisés ocasionalmente mencionaram o idioma desconhecido das nações que Deus usou para punir Israel como sinal do juízo divino (Jr 5.15).

Isaías disse a mesma coisa: Deus haveria de falar em juízo e julgamento aos israelitas rebeldes por intermédio de um povo que levantaria para invadir e desterrar os judeus de Canaã, povo esse cuja língua Israel não conhecia (Is 28.11,12). Historicamente, essas ameaças proféticas se concretizaram quando os assírios e babilônicos invadiram e desterraram os judeus cerca de 600 anos antes de Cristo. Os gritos de guerra dos soldados invasores num idioma desconhecido para os judeus deveria tê-los feito lembrar da maldição.25

Roy Ciampa e Brian Rosner salientam:

A interpretação paulina desse texto mostra que Deus não conseguiu fazer com que seu povo lhe respondesse, nem mesmo tendo lhes falado de uma forma que chamava tanta atenção. Paulo entende que os judeus incrédulos de sua época ainda são culpados diante de Deus e precisam de redenção. Isso mostra que, na opinião dele, nem mesmo o exílio trouxe a nação de Israel de volta para Deus (cf. Rm 3.9-20; 9.2-8,27-33; 10.1-3; Gl 3.10-13; 4.4,5,25; 1Ts 2.14-16).26

Contudo, Paulo reporta-se ao Antigo Testamento para ensinar aos Coríntios que as línguas estrangeiras tinham a função e o propósito de demonstrar o juízo de Deus sobre os judeus incrédulos dentre o seu povo (vs.21-22). Os israelitas incrédulos que estavam reunidos na festa do pentecostes ouviram os apóstolos falarem em diversas línguas estrangeiras. Eles deveriam ter entendido que, em breve, Deus enviaria o seu juízo sobre eles. A manifestação deste juízo aconteceu poucos anos depois, quando Jerusalém foi invadida e assolada pelo exército do general romano Tito, no ano 70. Este julgamento foi um dos aspectos de um julgamento mais abrangente, que incluía, além disso, a destruição do templo, da cidade e a dispersão dos judeus para outros lugares do mundo. Estes últimos aspectos do julgamento de Deus sobre o Israel incrédulo são similares aos castigos prometidos em Deuteronômio 28.49-50.

Diante de tudo, entendemos que as línguas foram concedidas por Deus primariamente como um sinal de juízo para os incrédulos. O objetivo deste dom era que ele fosse um sinal para os judeus, conforme a profecia de Isaías. Se observarmos atentamente o livro de Atos, perceberemos que todas as vezes em que ocorreu a manifestação das línguas, os judeus estavam presentes (veja At 2.4-6; 8.14-18; 10.45-46; 19.6). Portanto, os coríntios, os pentecostais e os neopentecostais não deveriam ignorar este aspecto das línguas estrangeiras, mas terem outra atitude para com este dom; deveriam ser cautelosos e não agirem como “crianças desprovidas de juízo” que ficam excitadas com um brinquedo! A profecia, em contrapartida, foi concedida por Deus com um duplo propósito: a edificação coletiva dos crentes como igreja (vs.3,22b), e alcançar os incrédulos através da exortação e consolação, para, assim, levá-los ao arrependimento de seus pecados e adorar a Deus (vs.3,24-25).

Todavia, a função e o propósito das línguas não era somente demonstrar o juízo de Deus; existia ainda outro fator que deve ser observado. No plano histórico da salvação executada por Cristo Jesus, e, por conseguinte, no contexto da igreja do primeiro século, as línguas tiveram um papel crucial. Primeiro, as línguas serviram para mostrar que uma transição estava ocorrendo, ou seja, a mudança da antiga para a nova aliança (vs.21-22; veja At 2.5-21), e que o evangelho seria divulgado em todo o mundo (At 1.8). Segundo, Paulo considera as línguas como um dom que é útil para a edificação da igreja, desde que sejam exercidas no culto público e acompanhadas pela tradução (vs.27-28). Porém, quando as línguas eram usadas fora do culto público, denotava um sinal que autenticava o evangelho, como foi no pentecostes. Embora Deus tenha usada a profecia para revelar o evangelho à sua igreja, o dom de línguas foi uma adição de um milagre linguístico impactante para corroborar a profecia e aqueles que anunciavam o evangelho como enviados de Deus.

Pessoalmente, acredito que as línguas foram concedidas e restritas ao período apostólico. Depois de cumprir o seu propósito na história da igreja, com a expansão do evangelho ao mundo, e a conclusão do cânon das Escrituras, as línguas não foram mais necessárias e, portanto, cessaram. Mas as línguas não ressurgiram com o movimento pentecostal, no final do século 19? E o fenômeno das línguas modernas? É verdadeiro ou falso? Continuarei meu argumento em defesa da cessação das línguas na terceira parte deste ensaio.

c) O efeito das línguas usado de forma equivocada (vs.23)

Paulo, agora, descreve o resultado que as línguas produzem quando não são usadas conforme o padrão estabelecido nos versículos 27-28. O apóstolo imagina toda a igreja reunida para um culto público. De repente, muitos ou todos [ênfase de Paulo] os crentes começam a falar em línguas em frenesi, e, assim, o culto é dominado pela histeria e por manifestações corporais espetaculares. Comportamentos similares podem ser vistos nos populares “terreiros de macumba”, no pentecostalismo e no neopentecostalismo. Exatamente no momento de “agitação espiritual”, Paulo supõe que pessoas não instruídas ou incrédulas entrassem no culto; talvez movidas pela curiosidade. Ao se deparar com a cena, a reação dos indoutos ou não instruídos [pessoas que não conhecessem outras línguas; ou talvez pessoas que não tivessem o dom de interpretação] e dos incrédulos [pessoas não crentes que nada sabem acerca do evangelho], seria imaginar que todos os que falavam em línguas desconhecidas de forma eufórica e irracional estariam loucos.

O verbo grego usado aqui para enlouquecer é empregado na Odisséia de Homero para descrever o estado de frenesi ou delírio dos adoradores de Dionísio ou Baco, o deus do vinho, durante os cultos orgiásticos celebrados em sua honra, quando esses adoradores começavam a dar gritos de louvor a Baco em palavras ou frases sem sentido ou nexo. Nos Escritos Herméticos, a palavra “loucos” é usada para descrever a impressão que os iniciados, cheios da gnose, deixavam nos estranhos.27

Para os demais moradores da cidade de Corinto, o comportamento exaltado e desprovido de domínio próprio (Gl 5.23) destes crentes poderia se assemelhar ao comportamento dos seguidores das religiões pagãs gregas de mistério. É bem provável que Paulo quisesse evitar esta associação entre a igreja de Cristo e os cultos pagãos ao escrever este trecho. Concordo com Augustus Nicodemus Lopes, que afirma que o espetáculo de uma igreja reunida com todos falando línguas ao mesmo tempo funcionaria como uma barreira à conversão dos visitantes. Por outro lado, se a Palavra de Deus estivesse sendo anunciada e explicada pelos profetas, ela penetraria como uma espada afiada nos seus corações e consciências, produzindo convicção de pecado e levando-os, humilhados, diante do trono da graça de Deus e dando-lhes consciência de que Deus estava realmente presente entre eles (vs.24-25). As línguas não poderiam produzir essa impressão. Mas a exposição da Palavra de Deus, sim.28

Os versículos 23-25 esboçam a preocupação evangelística de Paulo em não fazer com que o culto a Deus pareça loucura aos menos instruídos e aos descrentes. Talvez os coríntios considerassem as línguas como um sinal do poder de Deus se manifestando no culto. Infelizmente, muitos [não todos] pentecostais e neopentecostais têm este mesmo pensamento equivocado. Entretanto, Paulo não ensina um tipo de espiritualidade que ignora a razão e o bom senso. A impressão que os coríntios passariam aos visitantes é de que eram loucos. Esta é exatamente a imagem que muitos [não todos] os pentecostais e neopentecostais refletem para os visitantes de seus cultos. Se os pentecostais e neopentecostais querem demonstrar que Deus está presente no culto deles e se agrada do que estão fazendo, que preguem a Palavra de Deus fielmente! É o evangelho que levará os descrentes a se renderem a Deus e admitirem que Deus está presente no culto (vs.25), e não “supostas línguas” não traduzidas.

Continua nos próximos dias…

__________
Notas:
[12] Simon Kistemaker. 1 Coríntios, pág 682.
[13] Calvino. 1 Coríntios, pág 423-424.
[14] D. A.Carson. A manifestação do Espírito. A contemporaniedade dos dons à luz de 1 Coríntios 12-14, pág 106-107.
[15] Além da Escritura, a palavra indouto era usada para referir-se ao que não era membro das religiões pagãs, mas que participava esporadicamente de seus cultos.
[16] Simon Kistemaker ressalta que assim como as sinagogas tinham os tementes a Deus, cujo status estava entre os não-crentes e os prosélitos, assim também em sua extensão evangelística a Igreja primitiva tinha discípulos ou “inquiridores” (1 Coríntios, pág 685).
[17] Na conclusão de uma oração numa sinagoga era costume o auditório pronunciar um amém responsivo – um termo hebraico que significa “Assim seja!” – como sinal de aprovação sincera àquilo que era dito. Esse costume continuou no culto da Igreja primitiva, como é evidente nos escritos de Paulo e nos dos Pais da Igreja. Os membros da igreja vocalizavam seu consentimento à oração que um deles pronunciava. Se não entendiam uma oração expressa numa língua que lhes era desconhecida, não poderiam dizer amém (Simon Kistemaker. 1 Coríntios, pág 685).
[18] Augustus Nicodemus Lopes. O culto espiritual, pág 210.
[19] Ibid, pág 212.
[20] Não é possível sabermos com exatidão como Paulo sabia que falava mais idiomas que os crentes de Corinto, uma vez que aquele que falava em línguas não compreendia o que estava dizendo. Esta era a prática normal deste dom; por isso necessitava de um tradutor. Por outro lado, é bem provável que quando evangelizava em lugares que Jesus não era conhecido, o Espírito Santo concedia sobrenaturalmente o dom de línguas a Paulo para que falasse no idioma ou dialeto do povo. O mesmo ocorria com os demais apóstolos que falaram em idiomas que desconheciam no pentecostes.
[21] D. A.Carson. A manifestação do Espírito. A contemporaniedade dos dons à luz de 1 Coríntios 12-14, pág 107-108.
[22] John MacArthur. Fogo Estranho, pág 172.
[23] John MacArthur. 1 Corínthians.
[24] Augustus Nicodemus Lopes. O culto espiritual, pág 215.
[25] Ibid, pág 215-216.
[26] Roy E. Ciampa e Brian S. Rosner, em o Comentário do uso do Antigo Testamento no Novo Testamento, pág 923.
[27] Walter Bauer, F. Wilbur Gingrich e Frederick W. Danker. A Greek English Lexicon of the New Testament and Other Early Christian Literature.
[28] Augustus Nicodemus Lopes. O culto espiritual, pág 218.

Fonte: Bereianos

Divulgação: Eismeaqui.com.br

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