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A tragédia de Mariana [MG] e a bioética cristã

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A tragédia de Mariana [MG] e a bioética cristã

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O desastre de Mariana levanta algumas questões para debate. A primeira é a própria catástrofe e a força do impacto da ação humana sobre toda a biodiversidade, incluindo tragicamente o próprio ser humano…

A tragédia de Mariana [MG] e a bioética cristã

O desastre de Mariana levanta algumas questões para debate. A primeira é a própria catástrofe e a força do impacto da ação humana sobre toda a biodiversidade, incluindo tragicamente o próprio ser humano. A segunda é saber qual a parcela de responsabilidade do ser humano diante da natureza a luz das Sagradas Escrituras. E a terceira seria encontrar uma possibilidade para uma ação responsável em pleno século XXI.

Questões referentes à ecologia e bioética tem tomado frente em debates teológicos. Na América Latina temos L. Boff (2004) e a ética do arco-íris, e a nível mundial o Papa Francisco (2015) e a ética para a casa comum. Seus textos podem ser lidos como uma reação a tradição cristã que segundo A. Linzey (1996) é o legado amargo do cristianismo: supor que a natureza é apenas um bem útil para o ser humano e desta forma destituída de qualquer direito.

Porém este não é o único legado do cristianismo para com a natureza, houve na história comum da Igreja uma atitude diferenciada. São Francisco de Assis é tido como modelo para ecologia, que segundo Fluck (2015) “tentou depor o ser humano de uma soberania despótica sobre a natureza, a bem de uma democratização da relação entre as criaturas e Deus”, e conclui “A nós cabe ouvir os gemidos ainda mais gritantes de hoje e dar-lhes uma resposta contextual e contemporânea”. Passemos a ouvir os gemidos de Mariana.

Segundo o jornal Folha de São Paulo, em matéria de 15/11/2015, a tragédia em Minas Gerais irá secar rios e criar um deserto de lama. Podemos chamar de tragédia, pois este é o maior desastre ambiental provocado pela indústria de mineração em nosso país, e segundo o professor e pesquisador André Ruschi é o maior da história do Brasil. Dois distritos foram totalmente destruídos, sessenta bilhões de litros de rejeitos de mineração de ferro, totalmente inférteis, foram despejados na bacia do Rio Doce. Segundo especialistas, demorará centenas de anos para a formação de um novo solo, isto é, as gerações futuras de nosso país pagarão e colherão os efeitos deste desastre.

Provando que a gestão ambiental brasileira está falida, carregando o peso da certeza de extinção de várias espécies endêmicas e dos efeitos incalculáveis. Mesmo os milhões cobrados em forma de multa não serão o suficiente para trazer de volta toda a vida que foi perdida. Não se sabe o impacto que causará quando a lama chegar ao litoral do Espírito Santo. E quanto o mercúrio prejudicará toda a cadeia alimentar da região, incluindo o ser humano. Podemos assim questionar a relação do ser humano e da natureza a luz da Bíblia.

A relação ser humano e natureza nas Sagradas Escrituras

Quando lemos em Gênesis o relato da criação do ser humano encontramos duas narrativas distintas: Gn 1.26, 27 e Gn 2.7. E nelas temos a relação do ser humano com Deus e com a natureza. Vamos nos concentrar nas expressões referentes à natureza.

Gn 1.26b, “Domine ele sobre os…”. Dominar, radah, usado vinte e duas vezes no Antigo Testamento tem por definição a ideia de governo. No que se refere a este verso de Gênesis o Salmo 8.6 de maneira paralela usa o termo mashal, governar ou reger, elucidando a questão de forma a mostrar o governo do ser humano sobre a natureza. De maneira interessante para a tradição judaica (Rashi) esta expressão de domínio possui um duplo sentido, se merecedor dominará o homem os animais, mas se não for merecedor será dominado pela natureza. Davidson (1985) compreende aqui que este domínio é a semelhança que o ser humano compartilha com Deus, o domínio sobre as criaturas. De maneira diversa Schwantes (2002) compreende que o ser humano não está espelhando a imagem de Deus pelo domínio, mas que Deus o está empossando como administrador da criação, que o ser humano é participante com os animais e desta maneira deve conviver com a natureza em irmandade.

Gn 2.7, “Então o Senhor formou o homem do pó da terra…”, há nitidamente aqui um jogo de palavras entre homem, adam, e terra, adamah, relacionando o ser humano corporalmente a terra, pois é a ela que ele voltará (Gn 3.19). A tradição judaica (Rashi) entende que Deus usou a terra dos quatro pontos cardeais para que o ser humano encontre em todos os lugares um sepulcro. Para Davidson (1985) a criação do ser humano a partir de algo já criado demonstra a comunhão encontrada entre o homem e a natureza. Corroborando com esta posição Schwantes (2002) entende que o local onde o ser humano se realiza é na terra, o espaço da existência humana.

Na sequencia do texto, “e soprou em suas narinas o fôlego da vida, e o homem se tornou ser vivente”. Fôlego de vida, neshamah, se refere à respiração, aquilo que dá vida aos seres, todos os que respiram. Davidson (1985) aqui nesta passagem encontra a diferença entre o ser humano e o restante da criação, pois somente o homem recebeu o dom da vida pela respiração de Deus. A tradição judaica (Rashi) entende esta questão não só como a distinção entre o ser humano e os outros seres vivos, mas vê aqui a natureza humana sendo parte material, criado do pó da terra, e parte celestial, a alma, sendo soprada por Deus na narina humana. Abrindo caminho para uma compreensão espiritual do ser humano, não só feito de matéria, mas com a marca da transcendência de alma se comunica a Deus e a Ele retornará (Eclesiastes 12.7).

Assim de maneira bem clara podemos tirar algumas conclusões sobre a relação do ser humano e sua relação com a natureza. A primeira é que há algo no ser humano que o comunica com a criação, isto é, de que cada ser humano nascido faz parte do planeta terra, é composto do mesmo material. Sugerindo assim uma espécie de irmandade entre o homem e a natureza, pois é em parte o mesmo material. A segunda conclusão é a diferença marcante entre o homem e a natureza, diferença que se dá na transcendência, isto é, somente o ser humano é portador do sopro divino e capaz de se relacionar diretamente com o Criador. Desta forma temos que o homem mesmo sendo parte da criação é superior a ela, não uma superidade tirana, mas um governador responsável, isto é, cabe ao ser humano a responsabilidade sobre a criação. Hans Jonas propõe uma reflexão sobre a responsabilidade do homem diante da natureza.

Hans Jonas e a ética da responsabilidade

Seguindo na esteira de Hernandez (2014) de que para um cuidado holístico da natureza a partir da religião se faz necessário uma reflexão transdisciplinar na busca de princípios pautados nos novos paradigmas científicos do século XXI encontramos em H. Jonas uma perspectiva. O filósofo judeu Hans Jonas é considerado um dos mais proeminentes do século XX, nasceu na Alemanha em 1903. Foi aluno de Martin Heidegger entre os anos de 1921 e 1924, período em que se torna amigo de Rudolf Bultmann, considerado um dos mais influentes teólogos do século XX. Influenciado pelo pensamento destes dois desenvolveu uma tese sobre o gnosticismo. Com a ascensão do nazismo deixou a Alemanha em 1934 para viver nos Estados Unidos. Neste país se dedicou a estudos sobre a biologia e publicou em 1966, O princípio vida: fundamentos para uma biologia, e em 1979 publicou a obra que o fez conhecido mundialmente, O princípio responsabilidade, ensaio de uma ética para a civilização tecnológica.

Em sua primeira obra, O princípio vida (2004), o autor procura reavaliar o lugar do ser humano na natureza, para construir um novo patamar do pensamento ético. Procura vencer o rigoroso antropocentrismo imposto pelo idealismo moderno e o existencialismo, e derrubar as barreiras do materialismo das ciências naturais, demonstrando que o corpo vivo é a reunião de duas perspectivas: idealismo e materialismo. Sua preocupação está sobre a sociedade da tecnociência, uma sociedade formada pelo imenso poderio humano sobre a natureza, um poder tão grande e desmedido que se não for usado com responsabilidade pode levar a própria humanidade à extinção. Assim se faz mais do que necessário uma revisão da própria ética, de tal forma que se possa encontrar os limites para o agir humano. Segundo Jonas as éticas clássicas e modernas, que estão fundamentadas essencialmente no sujeito racional, não tem condições de responder as novas demandas encontradas na sociedade contemporânea, e além do mais, as mesmas desespiratualizaram a natureza e dividiram o ser humano em corpo e espírito.

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Assim, dá sequencia em seu projeto ético por meio de sua obra principal, O princípio responsabilidade, ensaio de uma ética para a civilização tecnológica (2006), publicada em 1979. Que tem por base fundamental recuperar o lugar do ser humano na natureza, retomando o sentido de pertença, presença e cuidado do homem frente ao mundo e no mundo.

Sua preocupação principal é sobre a natureza e as ações e efeitos causados pelo agir humano, que muitas vezes vencem o tempo, e as próximas gerações ainda colhem suas consequências. Por isso a necessidade de uma nova perspectiva ética, que não pense somente no agir humano sobre outro ser humano no momento presente: “Decerto que as antigas prescrições da ética ‘do próximo’ […] ainda são válidas em sua imediaticidade íntima, para a esfera mais próxima, quotidiana, da interação humana. Mas essa esfera torna-se ensombrecida pelo crescente domínio do fazer coletivo”. Constrói, então, na esteira de Kant, seu imperativo categórico de uma ética da responsabilidade coletiva: “aja de tal modo que os efeitos da tua ação sejam compatíveis com a permanência de uma autêntica vida humana sobre a terra”. Formando assim uma ética que visa o futuro, tornando-o o principal referencial, um referencial totalmente possível, que ainda ultrapassa o horizonte de todas as utopias políticas e religiosas.

Se a medida do pensamento ético, da reflexão sobre os princípios e fundamentos do agir humano, até o momento só priorizou o tempo presente, aquilo que é de imediato, fica evidente que não há preocupação alguma sobre a garantia da própria existência da humanidade. Então, para Jonas, o melhor caminho para a humanidade é uma séria reflexão sobre as ameaças que o próprio ser humano é capaz de fazer, não somente sobre si mesmo e os outros, mas a natureza e o futuro da humanidade como um todo.

Assim podemos ver a importância do agir humano diante da natureza, de que isso é parte de sua função na criação, algo inegociável, e de extrema responsabilidade. Que não deve resumir suas ações por seus efeitos momentâneos, mas marcar cada um de seus atos pelo seu efeito futuro, isto é, se foi criado para cuidar da natureza seu cuidado não deve ser pautado somente no seu presente, mas em seu futuro. Desta forma o caso de Mariana e tantos outros devem ser entendidos por seus efeitos para as futuras gerações.

E por fim lemos “No futuro, quando os seus filhos lhes perguntarem…” (Dt 6.20), e podemos nos perguntar se haverá algum futuro para nossos filhos.

Bibliografia

BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada – Nova Versão Internacional. São Paulo. Tradução: Sociedade Bíblica Internacional, 2000.

BOFF, Leonardo. A voz do arco-íris. Rio de Janeiro: Sextante, 2004.

DAVIDSON, F. O novo comentário da Bíblia, Vol. I e II. São Paulo: Vida Nova, 1985.

FLUCK, M. R. História do Cristianismo: modelos, panoramas e teologia. 1. ed. Curitiba: Cia. de Escritores, 2015.

HERNANDEZ, M. C. P. A religiosidade holística e o pensamento complexo. Anais do Congresso da Soter, v. 1, p. 1411-1421, 2014.

JONAS, Hans. O princípio Vida: fundamentos para uma biologia filosófica. Petrópolis: Vozes, 2004.

___________. O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica. Rio de Janeiro: Contraponto; Ed. PUC-Rio, 2006.

LINZEY, Andrew. Los animales en la Teología. Barcelona: Herder, 1996.

PAPA FRANCISCO. Laudato si: sobre o cuidado da casa comum. Carta Ecíclica, Vaticano, 24 de maio de 2015.

SCHWANTES, Milton. Projetos de esperança: meditações sobre Gênesis 1-11. São Paulo: Paulinas, 2002.

RASHI. Bíblia, com comentários de Rashi. São Paulo: I. U. Trejger, 1993.

Fonte: Napec

Divulgação: eismeaqui.com.br

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